#18 Mosquitolândia

mosquitolândia

4,5

Essa resenha é baseada somente nas minhas impressões e interpretações pessoais. Não li nenhum outro tipo de crítica como forma de inspiração ou elucidação.

Título: Mosquitolândia
Autor: David Arnold
Ano: 2015
Editora: Intrínseca
Capa: 352 páginas

 

Uma coisa só tem validade depois que é dita em voz alta

 

Mosquitolândia nos reserva uma porção de ensinamentos, pensamentos profundos, doses cruas de tristeza e doses acolhedoras de humor e amor. Já posso adiantar antes mesmo de começar a resenha: é um livro incrível.

Sinopse

 

“Meu nome é Mary Iris Malone, e eu não estou nada bem”.

 

É com essa frase que damos a partida em Mosquitolândia. Se você lê-la e não ficar curioso para saber por que ela não está bem, então feche o livro e escolha outra leitura. Essa frase me fisgou, achei diferente começar uma história assim, admitindo desde o começo que a personagem tem um problema. Isso capta a atenção do leitor de imediato para descobrir o que é.

Mary Iris Malone, mais comumente conhecida como Mim, está fugindo. Ou viajando. Ou voltando às suas origens. Independentemente da palavra que você quiser usar, Mim está pegando o ônibus para reencontrar sua mãe. A viagem, como podemos observar no título da primeira parte, é longa: 1.524 quilômetros pela frente.

Não sabemos os motivos que levam Mim a desesperadamente pegar um ônibus para reencontrar sua mãe, tampouco os motivos que a levam a se separar dela. Tudo o que sabemos, no começo, é que Mim foi morar com seu pai Bary e a madrasta Kathy em outra cidade. O que podemos perceber é que não houve uma despedida. O contato sofreu um ruptura e Mim simplesmente foi levada embora e privada do convívio com a sua mãe. Os motivos, obviamente, sabemos conforme avançamos na leitura.

Essa é a premissa da história. Em uma viagem de 1.524 quilômetros podemos imaginar um mundo de coisas acontecendo. E, de fato, elas acontecem.

Estrutura e escrita

Gosto quando o livro é dividido em dois tipos de narrativas, como quando a história transcorre em diferentes arcos temporais.

Em Mosquitolândia, o autor usou um pequeno subterfúgio para abordar um pouco do passado e da psique de Mim: um diário de bordo.

Ao mesmo tempo em que Mim narra ao leitor todos os seus passos durante a longa viagem em busca do reencontro com a mãe, ela carrega consigo um diário, onde de tempos em tempos aborda acontecimentos do passado, explica os por quês de ser como é e fazer o que faz, fala dos mais variados assuntos e, principalmente, elenca os principais motivos que a levaram sair correndo para reencontrar sua mãe.

Mas esse diário não é para o leitor. Essa segunda narrativa é para uma pessoa chamada Isabel, que descobrimos quem é somente no final do livro (fiquei maravilhado quando soube).

Para mim, o diário de bordo é a narrativa chave de toda a história, pois aborda o passado. É por ele que compreendemos os medos de Mim, seus motivos, como ela chegou até ali, a relação com os pais na infância (principalmente o amor perfeito com a mãe e os atritos com o pai). É nesse diário que Mim, uma garota tão fechada, realmente abre o coração para essa misteriosa Isabel. Por ocasião, como espectadores, acabamos sabendo de tudo.

A narrativa dedicada a nós relata o que aconteceu durante a viagem.

A escrita é maravilhosa. Fluída, leve, não se perde em nenhum momento e não confunde o leitor quanto ao que está acontecendo. Fiquei surpreso quando li, na orelha do livro, que essa era a estreia de David Arnold. O cara fez um trabalho magnífico, como se já fosse um escritor com anos de experiência.

Mistura de sentimentos

Há tanto o que sentir em Mosquitolândia, sei nem por onde começar. Uma rápida pincelada.

Encontramos medo, pois Mim é uma garota com alguns traumas do passado, que aprendeu a se fechar e a não se permitir cativar pelas pessoas. Medo de se entregar e depois se machucar.

Encontramos alegria a partir do momento em que Mim encontra seus dois grandes companheiros de viagem: o divertido e inocente Walt, garoto com síndrome de Down, e o lindo e praticamente perfeito Beck, com quem Mim vem a fazer uma espécie de par romântico, mas sem chegar àqueles romances enfadonhos e clichês.

Encontramos piadas e momentos engraçados, pois Mim é sarcástica e debochada diante das coisas que ela detesta. Ela também é muito crítica.

Encontramos amor de diversas formas. Amor materno, amor de amigo e amor de alguém que aos poucos vai se apaixonando por outra pessoa.

Encontramos, também, o principal deles, que vai além do medo e que talvez não devesse estar na aba de sentimentos, pois é algo muito mais complexo. Mas cito aqui para não abrir um novo subtítulo: depressão.

É um dos propulsores da história. A doença liga diversos pontos da narrativa e é a resposta para muitos dos enigmas que Mim encontra pelo caminho. E isso não é segredo, não estou dando spoiler. Se você acessar o livro na Amazon, tem uma amostra grátis para ler. Já na segunda página Mim escreve para a misteriosa Isabel. Uma das coisas que diz, é:

 

“Querida Isabel, como membro da família, você tem o direito de saber o que está acontecendo. Meu pai concorda, mas diz que eu deveria evitar ‘assuntos pesados e depressivos‘. Quando perguntei como ele sugeria que eu fizesse isso, considerando que nossa família tem tendência à depressão e a pegar pesado, ele revirou os olhos e bufou, como sempre”.

 

Então, fica claro desde o começo que a depressão paira na história. No entanto, não temos certeza se isso acontece com Mim, seu pai, sua mãe, ou quem quer que seja. Sabemos que afetou muito a vida da família, mas só vamos descobrir como e por quem conforme avançamos as páginas.

Mary Iris Malone

Como leitor, eu me apaixonei por Mim. De verdade. Acho que nunca disse isso antes sobre qualquer personagem, pois não costumo fantasiar entre realidade e ficção. Mas, cara, ela me cativou de uma maneira ímpar.

Conforme fui lendo mais de suas cartas para Isabel, vi-me admirado e embasbacado pela sua simplicidade. Simplicidade de ser, de viver e de compreender o mundo ao seu redor, mesmo quando esse mundo reserva momentos de grande magnitude.

Mim é aquela pessoa que se sente desconfortável em um restaurante elegante, cheio de gente rica e com suas etiquetas, que sorriem sorrisos falsos e que vivem uma vida de amarguras e mentiras. Percebi isso em uma das cartas onde ela relata uma lembrança especial com a sua mãe, a figura que lhe serviu de molde para ser o que é.

No feriado do dia do trabalho, as duas encontraram uma espécie de festa de bairro, perdida em um beco quase que escondido. Algo muito simples, muito humilde, quase pobre. Porém, a alegria era genuína. Lá, as pessoas estavam realmente se divertindo. Lá, havia respeito e não havia julgamento.

Essa é Mim. Uma menina que preza as coisas simples da vida, as coisas que são verdadeiras e que envolvem sentimentos verdadeiros. Do contrário, ela cria repulsa, critica e debocha.

Mim aprendeu a se fechar para pessoas desconhecidas que aparentam ser arrogantes e não faz questão de parecer educada para com quem não merece. Em contrapartida, morre de amores já nos primeiros minutos em que conhece Walt, o menino com síndrome de Down. O carinho e o zelo que ela tem pelo menino é o âmago de toda a sua personalidade.

Por mais fechada e amedrontada que seja, Mim sabe ser amorosa e protetora com as pessoas que merecem. E tudo isso foi herdado de sua mãe, Eve. Essa personagem conhecemos por meio das cartas à Isabel, e é também um afago caloroso no coração ver o quanto de amor pelas coisas simples da vida ela tem, como sentar no sofá da garagem de casa com a filha e ouvir Elvis na vitrola.

Por fim, a ideia que melhor define Mim é a seguinte: ela dificilmente gosta para valer de alguém, mas quando gosta, é para valer!

Walt e Beck

Apesar de levarem a alcunha de personagens secundários, os dois são extremamente importantes na trama e na vida de Mim. São eles quem a acompanham por boa parte do trajeto até Ashland, Ohio.

Walt tem síndrome de Down e não sabemos praticamente nada sobre o seu passado ou o que estava fazendo no local onde seu caminho se cruzou com Mim. De qualquer forma, esse garoto é amável na milésima potência. Por muitas vezes Mim diz que a sua vontade é de apertar suas bochechas e enchê-las de beijos. De fato, também tive essa vontade.

Apesar da síndrome, Walt é muito esperto, ama garrafas d’água da marca Mountain Dew e não se separa nunca do seu cubo mágico, na qual ele é expert em completar.

Enxerguei no personagem Walt a doçura e a beleza da vida, passando muito pela simplicidade que citei anteriormente. Ele é a prova de que a inocência tem força o suficiente para barrar as crueldades e realidades do mundo.

Beck. Ah, o que dizer de Beck? Ou, como falar de Beck sem suspirar, sem bambear as pernas e sem sentir o sangue ferver?

Não sou eu quem sente essas coisas por ele, é Mim, ok? Ela morreu de amores por Beck antes mesmo de conhecê-lo, primeiramente pela sua beleza. Posteriormente, pela sua personalidade afável e o bom coração que carrega no peito.

Beck tem a sua história de fundo e o livro inclusive pega um desvio do curso principal para abordá-la rapidamente. É como se fosse preciso dar um propósito a ele além de apenas arrancar suspiros da personagem principal e ser o motorista da viagem.

Mais do que gostar do Beck, eu gostei da relação que se estabeleceu entre ele e Mim. Os dois batem na mesma sintonia, simplesmente assim . Falam as mesmas bobagens, têm o mesmo tipo de humor e são evasivos quando o sentimento surge mais sério. Isso nos deixa apreensivos até o final: diabos, vocês vão ficar juntos ou não???? Eu quero logo shipar esse casaaaaaaaaaaal!!!

Sempre há uma explicação

Sempre. Em Mosquitolândia não seria diferente.

A forma como foi escrito nos deixa sempre em dúvida quanto ao que vai acontecer ou os motivos do porque as coisas são o que são. Nunca temos a resposta imediata, mas logo ali na frente sem dúvida a teremos.

Se na página 10, só um exemplo, Mim fala de uma paranoia sua que em um primeiro momento parece muito idiota para o leitor, logo lá na frente, pela página 237, passamos a conhecer os seus motivos e nos pegamos pensando: “putz, agora está explicado. Entendi porque ela é assim”.

Sempre há uma explicação.

Assim como há uma explicação para a relação conturbada e difícil que Mim tem com Barry, seu pai. E aqui, acho válido citá-lo por um aspecto muito importante. A todo momento nos é pintado um cenário de pai um pouco cruel, que não soube amar direito a filha e que, devido às suas próprias paranoias quanto aos casos de depressão na família, quer a todo custo evitar que a filha seja uma “louca”. Isso culmina nele empurrando remédios goela abaixo para Mim, mesmo que ela não queria ou diga que se sente bem.

Com todos os elementos da narrativa, Mim nos convence de que seu pai não é uma boa pessoa. Quer dizer, ele tenta ser, mas acaba conseguindo o contrário, como ela afirma neste trecho:

 

“Mais tarde, eu entenderia que essa era a grande dicotomia: uma pessoa querer o melhor mas sempre despertar o pior. Meu pai fazia exatamente isso. Não era o bastante ajudar uma senhora a atravessar a rua. Ele tinha que sacar uma arma e dizer para ela ir mais rápido. Seus métodos não eram só ineficazes, eram insanos. Tal é o destino de homens bons que sucumbiram à loucura do mundo”. (Pág. 228)

 

No entanto, a tendência é cometermos o erro de nos precipitarmos no julgamento. Eu cometi esse erro, pois queria a cabeça de Barry por causar tanto mal à Mim. No entanto, repito: sempre há uma explicação. E por mais cruel que possa parecer, como de fato é, Barry tem seus motivos. Quando descobri esses motivos, eu simplesmente me desarmei. Troquei o ódio pela compreensão e pelo sentimento de pena.

O mesmo vale para Kathy, a madrasta. Mim é passional ao falar dos dois de maneira tão negativa, pois essas são as lembranças que os dois deixaram. Ela foi marcada por eles assim, então, nada mais compreensível do que Mim fazer a caveira deles para nós.

Mas nada é definitivo e sempre há uma explicação.

Cultura pop

O livro está repleto de referências pop e eu achei isso magnífico!

Jamais lembraria todas de cabeça e também não anotei cada uma que encontrei, mas algumas são:

Filme – Jurassic Park, O Iluminado, Highlander II, Star Wars, Senhor dos Anéis
Livro – não mencionou qual obra, mas citou Phillip K. Dick

Mim também cita músicas e bandas, mas não anotei e agora não lembro para falar 😭

Por que eu abri esse tópico aparentemente inútil? Porque sempre há uma explicação. Essas referências tornam Mim um pouco de nós, causa mais aproximação e identificação. Torna-a, definitivamente, uma personagem mais crível de realmente existir.

Escolhas e consequências

Penúltimo tópico antes do encerramento, prometo. Esse é muito importante.

Além da depressão, há outro assunto delicado que é rapidamente abordado, mas sem maiores detalhes sobre o quê, com quem, como, quando, onde ou por quê. Trago isso somente pelo fato de que Mosquitolândia me fez lembrar que a vida, a todo o instante, é feita de escolhas e que precisamos sempre estar cientes de que essas escolhas trazem consequências.

É como se tivéssemos dois caminhos a seguir, e cada desses caminhos se bifurcam em outras dezenas de caminhos. Ou seja, que acontecimentos deixaram de existir com a nossa escolha? As consequências, por vezes, podem fazer não valer a pena. Mas a vida, infelizmente, não vem com um manual de previsões.

Algumas das escolhas feitas por Mim são decisivas e afetam a vida de terceiros.

Quase perfeito

Pensei muito. Mas pensei muito mesmo, coloquei todas as minhas impressões na balança com a intenção nada isenta de dar 5 estrelas para Mosquitolândia. E nem tenho vergonha de admitir. Mas infelizmente não deu. Dois pontos cruciais na história não foram perfeitos como restante dos outros pontos igualmente cruciais.

1. Há um momento na história em que ocorre um acidente. Sem maiores detalhes de como e com quem para evitar spoilers. Mas a forma como esse momento se resolveu, como se um acidente de trânsito fosse pequeno como um tropeção em uma pedra, me incomodou. Pareceu-me tão banal, não houve consequência alguma.

2. Da primeira até a última página, Mim vive em função do reencontro com a mãe. E somos naturalmente pegos pela expectativa do momento, imaginando como vai ser e o que, afinal, a sua mãe tem de errado. Teremos um reencontro emocionante, principalmente por todos os obstáculos da qual Mim passou, viajando mais de mil quilômetros praticamente como fugitiva. Seria a conclusão épica e emocionante de uma grande aventura. Mas não.

Foi um reencontro que me decepcionou de uma maneira inexplicável. Foi muito rápido, e ao invés do autor focar em um diálogo mais elaborado e elucidativo entre mãe e filha, ele preferiu deixar no ar, como se a vida seguiria o seu curso e as coisas se resolveriam, apesar de não acompanharmos mais porque o livro naturalmente acaba!

 

Conclusão

Ufa!

Desculpem o longo texto e muito obrigado por terem chegado até aqui. Acho que a minha conclusão não é mais nenhum mistério, né? Leiam Mosquitolândia, por favor. Leiam e compartilhem suas impressões comigo. É uma história fabulosa.

Sabem o que ela me lembrou? A mesma atmosfera de auto descobrimento e aventura presentes no filme “Na natureza selvagem”. Se você nunca assistiu, corre! É igualmente magistral.

Essa resenha está sendo lançada dia cinco de fevereiro, mas já cravo aqui para vocês sem medo de errar: em 2020, quando eu fizer meu TOP 5 de leituras do ano, Mosquitolândia estará na lista.

3 thoughts on “#18 Mosquitolândia

  1. Se lembra Natureza Selvagem, é porque você aprende algo com a leitura.

    E uma pena você ter citado o *******, porque agora, ao ler e chegar nessa informação talvez não seja mais tão impactante.

    Será? =(

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